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ANTROPOFAGIA DA RE-VOLTA

A exposição Antropofagia da re-volta apresenta trabalhos de Tadeu Kaingang (PR) e do coletivo Kókir, grupo que o artista integra junto a Sheilla Souza e parentes Kaingang da Terra Indígena Ivaí (PR), Guarani Nhandewa, Tupinambá, entre outros povos e artistas indígenas e não indígenas.

Na poética das obras apresentadas muitas dimensões e camadas partem de tempos entrelaçados. Para o povo Kaingang uri indica o tempo presente e vãsy remete ao passado (TOMMASINO, 1995). Os elementos ativadores de conexões positivas entre tempos, espaços e pessoas diferentes reverberam na antropofagia, relacionando matéria e conceitos, compondo a sua configuração enquanto arte indígena na contemporaneidade. Isso acontece no agenciamento de extensores de expressões estéticas intangíveis e até mesmo no próprio conceito de materialidade no campo da visualidade (INGOLD, 2012, p.29).

A proposta pretende provocar reflexões sobre as diferentes visões sobre a antropofagia buscando questionar os sinais diacríticos presentes nas expressões incorporadas. As obras carregam uma carga de associações ligadas a ideia de fome, na tradução em abundância de identidades e alteridades que se diferenciam de versões que desenham o indígena no passado, porque no presente somos agencia de inter-relacionamos na contemporaneidade (CASTRO, 2002 p.115).

Muitos aprenderam em livros, códigos importados do ocidente e sua quebra em múltiplos códigos revela a diversidade simbólica da oralidade. Ela passa ser convertida dos símbolos em uma construção de uma escrita indígena, em sua especificidade étnica ao serem resinificados em uma revisão na contemporaneidade.

Alguns códigos hegemônicos têm sido quebrados na contemporaneidade, a ideia de pureza cultural vem sendo revista, considerando que os indígenas ao saírem das aldeias, não se distanciam necessariamente da sua realidade, ao ressignificar suas histórias no contexto dessa modernidade que não foi inclusiva.  Nessa renegociação de papeis, buscam viver as experiências, que na percepção Kaingang se traduz ora como Koreg– feio, ora como Xinoy –belo e também associando ambos, em determinadas situações.

No livro “A invenção da cultura”, Roy Wagner (1975) apresenta o conceito de “antropologia reversa”, que o coletivo Kókir adapta na ideia de “antropofagia da re-volta”. Trata-se de refletir sobre a inversão da lógica proposta por Wagner, que sugere a escuta do que outro tem a dizer sobre nós, em lugar da usual postura do antropólogo que investiga os povos indígenas, imprimindo uma visão eurocêntrica sobre a alteridade. A antropofagia da re-volta busca compreender o que o outro (o indígena) tem a dizer sobre o não indígena, isto é, de que forma ele compreende seu modo de ser e pensar, com base na cosmovisão de seus ancestrais.

A ideia do coletivo Kokir é pensar sobre como os indígenas fazem suas leituras sobre a cidade e o modo de viver não indígena, além de problematizar nesse contexto, a tentativa modernista de buscar a identidade nacional a partir de modelos formais europeus

Apesar do olhar truncado e espelhado dos modernistas sobre as culturas indígenas, há

brechas que permitem nutrientes para uma antropofagia da re-volta, fundada nas cosmovisões indígenas, que permitem alimentar a vitalidade de uma terra viva.

A arte indígena contemporânea vem aos poucos transformando o sistema das artes. Convive com novas descobertas e composições, em uma nova trama. Sua paleta de cores do mundo oscila entre vegetais, minerais e animais, na clareza do dia e mesmo na noite estrelada, dos azuis resplandecentes ao cinza do tempo que desaba em águas, ativa em contínuo movimento o ciclo da vida, em que cada canto transborda e invade. Nessa transformação do ciclo de vida, ela traz o processo de calmaria a cada paisagem que os mundos revelam em suas cores, em múltiplos planos. Suas dimensões são preenchidas desses azuis, amarelos, vermelhos, tons terrosos e verdes da natureza. A paleta de cores do mundo que inclui o próprio arco-íris, em abundância cromática, uma intensidade de mistura e pureza que pode estar isolada quando aprisionada em padrões estéticos a ela alheios.

Nas criações apresentadas na exposição Antropofagia da re-volta fica exposto o cenário da performance humana em relação aos conflitos e questões ecológicas. O foco dos trabalhos está na ganância e violência das guerras que mancham a terra com a seiva vermelha, espelho do corpo.

Diante do conflito promovido por convenções, leis e ideologias que guiam este juízo criam desertos vales de silêncio, secando fontes de diálogo, criando divergências e construindo um monólogo que espelha em si mesmo. Por outro lado: a genealogia das ideias, a língua sem arcaísmos, sem erudição, a filosofia, a poesia solta em transbordamento, como a mensagem deve ser.

Na colagem digital De Han Staden à Boticelli sob o olhar da antropofagia da re-volta o tema da antropofagia na cosmovisão grega é abordado para evidenciar que ela não acontece apenas nas culturas indígenas.  Na colagem, Europa é a figura feminina que aponta para um mapa. Ela é uma figura desenhada pelo artista belga Theodore De Bry (1592) a partir de ilustrações de Hans Staden, mercenário alemão que esteve no Brasil no século XVI e ficou por nove meses prisioneiro do povo Tupinambá. Hans Staden ilustrou um ritual antropofágico em 1557 a partir de sua visão eurocêntrica, manifesta na frase em que um indígena haveria dito: ‘Lá vem a nossa comida pulando’ (BOPP,1977, p. 41). Europa está ao lado de uma vaca, que poderia ser ela mesma, pois foi transformada em um bovino por Zeus.

Na cosmologia grega sobre a origem do universo, o tempo foi personificado na figura de Cronos, que devorava seus filhos e desperta o instinto antropofágico, pois trata-se de um deus que devora sua própria criação. Zeus interrompe o ciclo de Cronos.  Sua relação violenta com sua esposa Gaia, sinônimo de terra e natureza, mostra metaforicamente a continuidade da destruição da natureza alavancada pelo modelo de desenvolvimento ocidental. A forma mais recorrente utilizada no Ocidente para pensar o ato de criação é o modelo hilemórfico grego. Após a morte de Cronos, com o novo ciclo de Europa e Zeus, os mortais abaixo do Olimpo buscam imitar as divindades, contaminando os campos de Gaia.

Na colagem Sequestro de Abya Yala, um desenho de uma mulher, feito pelo artista Philip Galle (1743) personifica Abya Yala, que é chamada por Galle de América. Na obra de Tadeu, América carrega a cabeça de Europa, como uma espécie de vingança. A cosmologia grega viaja por essas terras antes de Europa cooptar com sua crença hegemônica as espiritualidades existentes. O ar areja os pulmões de Gaia que ainda respira e este ar de vida vem do manto verde da América.

Na obra Galdino presente vemos com os olhos do tempo. Ali ao relento, o descanso é para poucos, aos olhos famintos dos vigilantes à espreita na busca da sua presa. A vitrine mostra o fogo e assiste os cavaleiros deixando sua impressão pálida na digital branca, toda a vida opaca, acinzentando uma cultura.

Na obra Franz Keller, eu o guará foi utilizada uma fotografia do povo Kaingang da Terra Indígena Ivaí, feita por Franz Keller em 1876. Para cada árvore que tomba em Pindorama, palavra que significa “Terra das Palmeiras,” torna-se mais frágil esse mundo e nem o uivo do |Guará afugenta tamanha violência, nem mesmo a dança do Jóty (tamanduá) será esquecida, até mesmo em Brasília onde ecoa ‘Terra Livre’, enquanto o espírito de Galdino está presente.

Emã significa Terra Ancestral, na língua Kaingang. Tekohá significa lugar onde somos o que somos na língua Guarani. Emã Tekohá é uma gravura feita a partir de um trançado feito por Elvira Crespim, indígena Kaingang da Terra Indígena Ivaí. O trançado recebeu tinta feita com terra e depois a monotipia foi impressa sobre papel. Duplamente materializado o trançado impresso abre a possibilidade de desdobramento e continuidade, a re-volta como premissa de um futuro mais promissor, onde o respeito pela Terra seja compreendido como garantia da vida para as próximas gerações.

Em Pindorama ativação de Macunaíma há uma metáfora que relaciona a modernidade com as imagens da cidade como um labirinto. Sua dinâmica substitui o verde do chão no concreto que se levanta formando um labirinto que guarda o Minotauro. Há uma polarização entre o grupo autointitulado Verdeamarelo/Anta e o grupo dos participantes do movimento Pau- Brasil. Notamos que os dois grupos, desde o início da década de 1920 estão em conflito representando a oposição entre a Ação Integralista Brasileira x Partido Comunista. No “Manifesto da Poesia Pau-brasil”, essa terra de seiva vermelha encontra acolhida em Abyla Yala, que veste o corpo na árvore Pau-Brasil cujo nome científico é Caesalpinia echinata. É uma espécie nativa das florestas tropicais brasileiras, presente no bioma da Mata Atlântica, que sangra e marca esse chão em país nominado Brasil, na intencionalidade capitalista (ANDRADE, 2003, p. 193).

Em Retrocesso, colagem digital realizada em uma co-criação com Darcy Dias de Souza e o coletivo Kókir, o mapa ao contrário traz uma reflexão sobre o vazio, Brasil, terra desvalida, desabitada, o verde descortina ao ser desmatado, deixa o corpo em pele crua, quase esquálido.

Olhar presente em Mariguã esquecida. Palavra modificada pelo ruído que surgiu na interpretação do termo que parece ter se transformado em Maringá, nome da cidade onde residem os integrantes do Coletivo Kókir. A população da cidade de Maringá acredita que o nome tem origem na canção de migrantes que cortaram o sertão, vindo de vários lugares, inclusive do planalto central, onde haviam muitos guarás, seriemas e a ema que corre de medo das máquinas que comem a terra e que deram origem a Brasília. Mas Mariguã pode ser a real origem do nome da cidade, de acordo com estudos sobre toponímia. Mariguã significa peneira de pescar peixe em tupi.

A terra, o corpo a vida violada no cerrado. A antropofagia da ganância que devora a natureza para plantar o cimento. Concreto que vai desenhando o chão igual na prancheta, pelo grafite que ganha escala nas malhas de borracha que cortam o sertão, restando Fé e pé. No rosto o olhar com atenção no rastro que desenha outros mundos e corpo que Ivaí foi trançado para guardar o que resta do mundo.

O que fica em seu lugar é apenas o silêncio, adentra nos campos e matas acariciando as criaturas. É o sopro divino que entoa o som dos pássaros em liberdade. Prender o ar é silenciar os pássaros, tornados prisioneiros de nosso devaneio. Ainda exigindo que cantem em sua clausura, sua tristeza. É reflexo de quanto nos aprisionamos nos emaranhados, como labirinto que nos alimenta, em fio de tempo a nossa prisão.

A vida é expressa em revoada, liberta os pássaros que temos dentro de nós, no encontro conosco e quem sabe nos ajuda a encontrar nosso bando. Escute o som deles para que possamos encontrar o caminho de casa, respeitar nossa morada, que é cada canto desse chão. Sintonizar com a vida, para que, com o canto dos pássaros possamos encontrar nossas origens, que vem das matas.

A cada sobrevoo filtramos nossas ilusões e limitamos a imagem em uma paisagem, que aos olhos dos pássaros seriam como resposta ao que nos afeta. Somos a chave de acesso livre, sem restrições do tempo, do espaço, da matéria e das crenças.

No nosso modo de interferir, reagindo aos modos de pensar, somos tomados pela força de seguir em frente. Se o mundo não é uma gaiola, por que então são criadas armadilhas da incerteza de não saber para onde ir? O ar que paira na paisagem não é verde, passa a ser tóxico, como o silêncio que destoa a cada palmo dessa terra que é devorada. Aos olhos de Topé, nas lágrimas da mãe que vê o mundo sem janelas. Um lugar em que as memórias atravessam pelas frestas. Que ainda possamos escutar o canto do colibri que está longe.

Para cada pássaro na gaiola, pássaro na palavra chave. Oscila no sentido do objeto, na ideia, nos pensamentos e no caminho para qualquer parte. Entre a natureza e a rua, duas percepções em uma relação que envolve um portal complexo de sistemas para um estado de alerta. A natureza resiste, emite sinais, fazemos parte do grande cosmos.

 

Referências:

ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. São Paulo: Globo, 2003.

BOPP, Raul. Vida e morte da Antropofagia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1977.

INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 24-44, jan./jun., 2012.

TOMMASINO. Kimiye. A história Kaingáng da bacia do Tibagi: uma sociedade Jê meridional em movimento. São Paulo, USP. 1995. Tese (Doutorado cm Antropologia Social).

CASTRO, Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac&Naify, 2010

VIVEIROS DE CASTRO, A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002. _________________

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac&Naify, 2010

 

 

Recomendamos conhecer:

  • AÇÃO CULTURAL COLETIVA “RECONECTAR A IMENSIDÃO” – Como resultado das reflexões durante a realização do curso de extensão “34a Bienal: arte e interculturalidade crítica promovido pelo Curso de Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá (UEM), o Coletivo Kókir, formado por Sheilla Souza e Tadeu dos Santos, juntamente com os artistas Mônica Nador, Coletivo Mahku e as ONGS Thydêwá e ASSINDI, convidam os participantes para uma criação conjunta. A criação consiste em uma imagem formada por composições com fotografia do corpo ou parte do corpo juntamente a elementos que remetem às relações entre nós, elementos da natureza e ancestralidade indígena. 
  • Com o nome de “CARA” apelidamos carinhosamente a iniciativa “Cocriações Artísticas – Resistências e Ancestralidades” que nasceu de um convite da Professora Dra. Alessandra Mello Simões Paiva da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) à ONG Thydêwá e desta ao coletivo Kókir.
  • Kókir como finalista do Prêmio SELECT realiza a ação “Fome de Mistura”  
  • Kókir em “SONHO DOS ENCANTADOS” galeria virtual
  • Obra “AIRE LIBERDADE QUE CANTO” – um pássaro feito com chaves preso em uma gaiola segura no bico um relógio; obra com destaque no videoarte, a música e a instalação, promove a reflexão sobre o confinamento em razão da pandemia de COVID-19. 
  • Obra “CERIMÔNIA DOS QUATRO VENTOS”- O AR trouxe belezas. Ao AR agradecemos. Os ventos ligaram Argentina e Brasil, indígenas de ambos países, artistas de ambos países; adaptaram uma cerimônia à vídeo.
  • RESISTIR AIRE”: obra audiovisual que adverte sobre a decolonização do pensamento. Os artistas que idealizaram a obra em cocriação foram: Coletivo Kókir (Tadeu Kaingang e Sheila Souza); Kadu Xucuru (Brasil); OzZo Ukumari, Elias Caurey Guarani (Bolivia); Shiraigo Mocoví (Argentina); Rudy Andrés Wiliche – Mapuche (Chile). Para os autores, “RESISTIR AIRE” permite mostrar que é possível respirar um ar novo como sopro de vida da terra limpa de preconceitos e estigmas.

 

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