03 out “A arte foi utilizada como uma maneira de concentrar a atenção na própria vida, na luta”. Conheça mais sobre a performance dirigida por Nicolas Salazar, artista do Reino Unido, em Kariri Xocó
Eles estão escutando foi uma residência artística realizada por Nicolas Salazar Sutil na aldeia KarirÍ-Xocó (Porto Real do Colégio), em junho de 2018.O trabalho concentrou-se no rio Opara (São Francisco), que é um dos focos da comunidade Kariri-Xocó. O rio é uma das principais fontes de sustento, memória e cultura.
Conheça mais sobre o artista residente e suas interessantes colocações sobre a arte ocidentalizada e produção indígena.
AEI: Como nasce um artista?
Nicolas: Nasce de parto natural ou cesária.
AEI: Por que arte digital?
Nicolas: Porque a arte é uma manifestação humana ancorada na condição material da vida, tanto como nossa condição espiritual é o mais esencial. Hoje em dia essas condições já estão determinadas pelas novas tecnologias e pelas novas subjetividades tecnológicas.
AEI: Como você vê o impacto do digital na arte? E se você não é “nativo digital”, qual foi seu salto para chegar a isso?
Nicolas: Vejo tensão, vejo oportunidades, vejo novas maneiras de criar conteúdos e formas, porém noto uma transformação em essência do que é uma necessidade humana de criar. Noto um fetichismo, uma fascinação pela tecnologia como se tivesse um valor intrínseco só por ser arte digital, só por ser feito pelas novas tecnologias já tivesse valor artístico. Um não levo ao outro necessariamente. A inovação tecnológica e a nova criação artística são duas coisas distintas. A arte é valiosa não só por trazer novos efeitos e ilusões tecnológicas. Uma obra de arte digital pode usar a última tecnologia de sensores ou simplesmente os dedos e evocar nossos dígitos, nossa tecnologia corporal. O valor da arte não passa pelo valor monetário das tecnologias que o artista decide usar.
AEI: De onde vem sua inspiração para criar?
Nicolas: De tudo que vivo, de tudo que vejo inerte ou móvel. De uma pedra a um organismo vivo.
AEI: Quais os desafios de criar em conjunto com outras pessoas?
Nicolas: Os desafios são múltiplos: logísticos, interpessoais, circunstanciais. A grosso modo um dos grandes problemas é que a arte fomenta o ego, a ideia do artista enquanto entidade especial, dotada ou diferenciada. Isso tende a criar tensões.
AEI: Por que o interesse pelo AEI? O que espera dele?
Nicolas: Me interessa muito a cosmovisão indígena.
AEI: Comente como foi viver este processo de residência na comunidade indígena e como essa experiência contribuiu para o seu desenvolvimento artístico.
Nicolas: Eu acho que há desafios na tentativa de combinar arte indígena e criatividade. A arte é uma organização ocidental, que pode causar dissonância em um mundo indígena. Em geral, a criatividade indígena não se dedica à criação de objetos de arte, para enquadrá-los em uma indústria cultural (museu ou galeria de arte), ou através de uma profissionalização da criatividade. Em vez disso, a criatividade indígena tende a se concentrar na própria vida, no intercâmbio entre as pessoas na vida cotidiana, para afirmar o poder do ritual e para sustentar as economias indígenas através do artesanato. Parece-me que o AEI é um projeto que busca uma maneira de conjugar essa distância entre dois mundos, mas ao mesmo tempo requer mais reflexividade e criticidade. Temos que entender que a arte não é valiosa ou benéfica simplesmente porque o artista diz isso. É possível que a AEI aponte a discrepância entre duas maneiras muito diferentes de entender a criatividade.
AEI: Como a sua arte dialogou com a arte indígena?
Nicolas: Não há diálogo entre arte e criatividade indígena. O que geralmente existe, e apenas alguns chegam a museus ou galerias de arte, é apropriação de estética, simbolismo, noções. Um se depara com a indústria, com os negócios culturais, com a publicidade. A criatividade indígena existe no ritual, que é sagrado, e no caso do Kariri-Xoco, secreto. O diálogo ocorre entre pessoas, entre seres humanos que são entendidos como participantes semelhantes e mútuos do único destino planetário. Fui a Kariri-Xoco não como artista, mas como pessoa. Fui incentivar experiências, compartilhar, aprender, oferecer. A arte era apenas uma maneira de concentrar a atenção na própria vida, na luta. É aí que estão a irmandade e a amizade. Eu não sou um artista, neste caso. Eu não sou o dono de nada que foi criado como um todo. Eu não aceito que o artista seja colocado à frente da vida e premiado como um autor. As experiências que vivemos pertencem à memória…
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