Fome ancestral: Conheça mais sobre a ponte que vai conectar os Tupinambá de Olivença na Bahia e o Kaingang do Ivaí no Paraná

“Fazer arte em mídias digitais junto com os povos indígenas amplifica a força de suas vozes e faz com que os brasileiros compreendam o olhar indígena como parte de nossa identidade e cultura”. Assim Sheila Souza define a importância de sua residência no Arte Eletrônica Indígena. Junto com Tadeu dos Santos, através do Coletivo Kókir, ambos irão estabelecer conexões entre dois povos indígenas de diferentes Estados. “Buscamos estabelecer conexões para pensarmos juntos sobre as posibilidades de criação que problematizem as fronteiras entre territórios, representações e sistemas culturais. Algumas das propostas para as colagens são transformações efetivas, como a reinvidicação de nomeação de uma rua com o nome Kaingang no bairro Jardim Tupinambá, em Maringá (PR)”, afirmam.

A fome ancestral é um termo cunhado por eles e significa “a vontade de conhecer as culturas indígenas e refazer nossas identidades a partir desse conhecimento. Desfazer a ideia de que os indígenas são fechados e mudar o cenário no qual, em realidade, nós é que nos fechamos para eles.”

AEI: Como nasce um artista?
Tadeu dos Santos: Foi por meio do encontro com uma criança, ao ver no desenho que fiz uma pergunta que estava implícita para ela, sua resposta veio com um sorriso de aprovação, que mostrou uma possibilidade de expressar minha subjetividade. Depois disso não parei mais. Também aconteceu com minha aceitação por parte do público, mesmo sem muito conhecimento técnico e de teoria da arte, sem saber da arte e suas fronteiras. Em um terceiro momento aconteceu com muitos tropeços e contradições para compreender o universo da arte, trilhando espaços mais acadêmicos. A arte é livre e eu queria me sentir livre também, assim me desprendi de tudo para seguir o caminho da arte.
Sheilla Souza: Pra mim nasce da liberdade e de um encontro. Liberdade de pensar, criar e me fazer do jeito que acredito ser mais autêntico. O encontro pode ser com outras pessoas ou comigo mesma. E não tem nada de especial, no sentido de ser algo que só algumas pessoas podem ter, porque pode acontecer com qualquer pessoa. Não é exclusividade de poucos iniciados, como pode parecer para alguns. Os artistas são criadores e todos podemos criar. Muitas pessoas acham que poucos podem ser artistas, mas na verdade todos podemos ser artistas. A criação é algo presente em todos os seres humanos. Mas para que a maioria esteja conformada sempre com o mesmo, nos fazem acreditar que os artistas sejam uma minoria de seres estranhos e fora da realidade. Acreditar que estamos “dentro da realidade” é não entender que tudo se transforma a cada momento e não compreender que somos livres e que podemos mudar o rumo das coisas.

AEI: Por que arte digital?
Tadeu dos Santos: A imagem é uma síntese na comunicação e a imagem digital permite que a arte seja mais dinâmica. A experimentação da matéria, cores, suportes e formas de pensar o mundo, na arte digital amplia as fronteiras. A imagem digital favorece, entre outras coisas, a interação, manipulação, edição, apresentação de portfólios e a comunicação em rede. Os programas de inclusão digital potencializam a interação por meio dos diferentes canais.
Sheilla Souza: Porque ultrapassa fronteiras e rompe muros em diferentes sentidos. A arte digital permite a comunicação entre diferentes mundos e isso nos dias de hoje torna-se algo fundamental. É importante na resistência contra tantos séculos de dominação cultural por parte de povos considerados superiores ou de primeiro mundo em relação aos povos da floresta.

AEI: Como você vê o impacto do digital na arte? E se você não é “nativo digital”, qual foi seu salto para chegar a isso?
Coletivo Kókir: A arte digital expande o alcance e a interatividade transformando o trabalho artístico radicalmente. Pode parecer estranho à primeira vista mas ela se aproxima da arte dos povos indígenas no sentido de enfatizar a criação coletiva e a gratuidade que pode acontecer nas trocas e relações. Somos parte de uma geração que não nasceu na era digital, mas muito próxima dela. Isso nos coloca em trânsito entre dois momentos. Na verdade o salto aconteceu na aproximação com o digital justamente para buscar um passo atrás. Não para retroceder, mas para desacelerar, buscando nas culturas indígenas o caminho de reconciliação com a natureza. A tecnologia digital então é apenas uma ferramenta para que a sabedoria indígena seja conhecida. A arte digital para nós não é algo que se mostra como futurístico, mas sim como uma forma de trazer à tona coisas muito simples mas muito verdadeiras, que precisam voltar a ser compreendidas e vivenciadas.

AEI: De onde vem sua inspiração para criar?
Coletivo Kókir: A criação acontece na escuta. Ouvir o que pessoas que geralmente não são ouvidas tem a dizer. Compreender as relações entre o que se entende por arte e as produções culturais de grupos indígenas. A criação vem do diálogo, da mistura, da indignação, da plenitude e da dúvida. Ela é uma tentativa de compreender questões nebulosas, decifrar equações que não são muito simples de solucionar.

AEI: Quais os desafios de criar em conjunto com outras pessoas?
Coletivo Kókir: Os desafios estão relacionados a saber colocar sutileza, respeito, verdade e potência nas criações. Trabalhar em coletivo já nos permite um aprendizado nesse sentido. Nos ensina a estar sempre conferindo se as vozes presentes no trabalho dizem o que realmente faz sentido para o grupo todo. Nos textos Fome de mistura e Fome ancestral, escritos para o catálogo “Sustento/Voracidade” (http://www.olharcomum.com.br/wp-content/uploads/2016/10/CATAL-KOKIR-2016.pdf) apontamos para essas questões. A fome ancestral é a vontade de conhecer as culturas indígenas e refazer nossas identidades a partir desse conhecimento. Desfazer a ideia de que os indígenas são fechados e mudar o cenário no qual, em realidade, nós é que nos fechamos para eles. A mistura é um meio de reconfigurar, porque incorporamos, nos tornamos parte de algo, ao contrário da ideia de apropriação. Estamos famintos de mistura, sobretudo no momento atual em que vivemos no Brasil. Isso porque diante da possibilidade de retomada do autoritarismo e violência, presentes em um momento abominável de nossa história, mais que nunca é preciso mostrar que não nos reduzimos às cores verde e amarelo.

AEI: Por que o interesse pelo AEI? O que espera dele?
Tadeu dos Santos: Primeiramente quero agradecer a oportunidade que permitiu essa ponte com os parentes, essa imersão que enriquece e contribui de forma sensível para uma expressão potente sobre o local de fala. A oportunidade de participar do AEI como parte do Coletivo Kókir nos permite contribuir no protagonismo dos povos indígenas, expresso na plástica digital.
Sheilla Souza: O AEI é uma iniciativa fundamental para que a arte indígena possa ter seu devido reconhecimento na arte contemporânea. É importantíssimo que surjam mais iniciativas como essa por todo o país porque as produções culturais indígenas precisam urgentemente ter mais espaços no cenário nacional. A arte indígena não pode mais ser vista como algo do passado, que não pode mudar e que não faz parte da arte contemporânea. Fazer arte em mídias digitais junto com os povos indígenas amplifica a força de suas vozes e faz com que os brasileiros compreendam o olhar indígena como parte de nossa identidade e cultura. Espero que com os resultados e os desdobramentos desse encontro possam surgir muitas outras oportunidades de interação como essa e que as instituições culturais passem a abrir mais espaços para a produção artística dos povos indígenas.

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