A tecelã de algoritmos. Conheça Sandra de Berduccy, diretamente da Bolívia para o AEI

A artista-pesquisadora Sandra de Berduccy explora e experimenta a relação entre natureza, processos de tecelagem tradicional -como tecnologia e fenomenologia- e diferentes linguagens das novas mídias. Com isso cria obras em diversos formatos onde práticas ancestrais são relacionadas à energia transformada em luz e cor. Para sua residência, que ocorrerá na aldeia do Cachimbo – Camacam Imboré/Tupinambá-BA, a artista, que aprendeu a tecer com as mulheres Quéchuas, vai se reunir com pessoas da aldeia que possuem prática artesanal com materiais locais. As obras combinarão conhecimentos, processos e materiais tradicionais com materiais pouco usuais como fibra ótica, micro controladores e sensores.

Conheça mais sobre a artista:

AEI: Como nasce um artista?
Sandra: Um artista nasce de sua própria prática artística. Entende-se essa prática, como processos e procedimentos, técnicas, conceitos e comportamentos utilizados pelo artista para a criação. Uma conduta operacional que, antes de ser mecânica, implica o desenvolvimento contínuo de uma disciplina interior. Como todas as práticas, a prática artística também gera objetos e dispositivos, se apropria de ferramentas, maquinas e aparelhos. Estes serão instrumentos essenciais para a criação, e o artista não deve apenas conhecê-los em profundidade e estar familiarizado com as funções para as quais esses objetos foram “programados”, mas deve explorar todas as possibilidades além dessa “programação”. Ou seja, não reduzir a prática à tecnologia, mas fazer uso dela, reinventando-a e manipulando-a de acordo com as necessidades vitais. E ainda transformá-los e combiná-los com o objetivo de preservar as intenções iniciais. Será a partir dessas práticas que o artista proporá algo que possa ser relevante ou não, para quem coexiste com ele.

A minha prática por exemplo, é tecer.

E que tem a ver o tecido com a tecnologia?

Se diz que o tecido é um sistema complexo altamente ordenado, e que o tear é uma máquina de pensamento onde uma sequência de algoritmos é operada pelo tecelão, se diz também que os razoamentos têxteis, são o software inerente a toda tecnologia, e que o ponto em que a trama e a urdidura são uma espécie de primitivo pixel e assim por diante.

Em todas as culturas, o tecido foi de mãos dadas com a mais alta tecnologia do seu tempo, mesmo agora essa premissa está em pleno vigor. A maneira como essa relação tecnologia-tradição têxtil, funciona está a caminho de se entender, primeiro que a tradição têxtil é uma expressão de um pensamento altamente tecnológico e que as tradições culturais são tudo salvo estáticas, temos que olhar para elas com um olhar mais aberto.

AEI: Como você vê o impacto do digital na arte? E se você não é “nativo digital”, qual foi seu salto para chegar a isso?
Sandra: Depois de muitos anos que eu estava trabalhando com “tecnologias” para obras de videoarte, live-cinema, videoinstalações, etc. Entendi que essas tecnologias eram um mistério para mim, como “caixas pretas”. Para resumir: Eu só conhecia apenas a “entrada e saída” dos aparelhos que utilizava. Então, desde 2009, comecei a criar dispositivos low tech (como projetores de caixas de frutas), mas principalmente aprendi a conhecer e entender como a eletricidade flui e como se manifesta. Eu aprendi sozinha eletrônica e programação na minha pequena casa do lado de um bosque nativo a três horas da cidade. E ao mesmo tempo eu aprendia técnicas têxteis complexas das minhas vizinhas, maestras tecelãs, mulheres quéchuas, que são as maiores custodias de uma tradição têxtil milenária: séculos de razoamentos tecnológicos criptografados num têxtil. Desde então, os procedimentos que utilizo, fazem parte de um processo de experimentação com eletrônica, eletroquímica, programação e técnicas têxteis tradicionais.

AEI: De onde vem sua inspiração para criar?
Sandra: Mais que uma inspiração é uma metodologia. Minha metodologia de trabalho é tentar responder com meus trabalhos uma cadeia de perguntas, em uma sequência que está ganhando em complexidade, experimentando técnicas, tecnologias e materiais. E, ao fazer isso, mais perguntas aparecem.


AEI: Quais os desafios de criar em conjunto com outras pessoas?

Sandra: O desafio é criar uma experiência coletiva, a partir da experiência pessoal do artista. A chave é que esta seja uma ação inspirada em uma dimensão do coletivo, abraçar nossas expectativas pessoais em relação à comunidade.
A linguagem em comum tem que ser a prática de arte: TECER, ENFIAR, TRANÇAR Práticas comprometidas que constroem afirmações coletivas que incluem populações, multiplicidades, territórios, afetos, velocidades e intensidades. Mas também são práticas para descobrir a diferença. Dependerá de como essas diferenças produzem situações interligadas, que por sua vez se traduzem em múltiplos acontecimentos e produzem outras trilhas.

AEI: Por que o interesse pelo AEI? O que espera dele?
Sandra: Diz-se que a forma mais pura de transmissão de lógicas e conhecimentos ancestrais não é necessariamente oral ou escrita, se não tecnológica e assim foi por muitas gerações.

Quando uma tecelã Quéchua ou Aimará ensina suas filhas a tecer, ela diz: “você deve aprender” não existe uma outra opção, adquirir essas habilidades e conhecimentos é o que lhes dará as ferramentas necessárias para sua vida futura. O tecido é aquele lugar utópico onde a ordem reina, um lugar além do tempo e do espaço, é a referência eterna, o não-lugar para voltar e ordenar pensamentos, e com estes o entorno é também ordenado.

Mas nas terras andinas também vivemos a distopia, a tecelagem está perdendo seu significado: as mães quéchuas não têm mais essa necessidade imperativa de ensinar a tecer a suas filhas. As conexões estão sendo diluídas com essa prática que conecta pensamento, comunidade e natureza.

A proposta da AEI, talvez seja um passo adiante para voltar a estas conexões.

3 Comments
  • Davy Alexandrisky
    Posted at 16:04h, 29 junho

    Muito bom conhecer Sandra Berduccy, seus trabalhos e suas ideias intelectualmente muito bem organizadas. Fico cada vez mais honrado com a eleição do meu nome para compartilhar com esses artistas maravilhosos um pouco da Cultura dos Povos originários que estão nos recebendo em Residência Artística, nesse fantástico Projeto AEI.
    Sou só agradecimentos!!!

  • sebastian gerlic
    Posted at 18:10h, 29 junho

    Sandra é DIVINA!!! O trabalho é divino!!! e vcs todos artestias, equipe, indigenas e + e + são divinos!!!!! LONGA VIDA o #AEI

  • Maria Pankararu
    Posted at 22:06h, 03 julho

    Impressionante o seu trabalho Sandra! Parabéns! Trazer sua experiência para outro coletivo indígena, outra cultura, certamente será uma experiência impactante e rica para todos nós!