Quando um bom filho a casa torna. Conheça a história de Bruno Gomes, alagoano, de volta a seu Estado natal para residência artística

Instigar, permitir e confiar. Essas são as três palavras que Bruno Gomes usa para se orientar em suas criações coletivas. O alagoano de Arapiraca, interior do Estado, é ilustrador, escritor, tatuador e toca flautas de vez em quando. Sua paixão é conectar imaginação e sentimento na criação de imagens que contam histórias. Conheça mais sobre o artista que realizou sua residência entre os dias 7 a 18 de junho na aldeia Karapotó, município de São Sebastião/AL.

AEI: Como nasce um artista?
Bruno: Se formos pensar na diversidade artística que temos em nosso povo e como naturalmente ela está presente no agir e no pensar de cada um, talvez a palavra arte deixe de existir e seja apenas vida; talvez a palavra artista deixe de existir e seja apenas gente.
Acredito que todos nós, com maior ou menor intensidade, já experimentou ou experimenta um estado artístico. Para mim, a arte que eu faço não é mais arte do que a comida que a dona Nide faz com tanto carinho, que me alimentou nos dias da residência em Karapotó Plak-ô.
Podemos concordar que a arte é inerente ao ser humano, mas só porque ele é mais uma peça complexa da natureza. Somos aprendizes e imitadores dessa Arte que nasce mesmo antes do artista. E quando a pessoa toma consciência desse poder de expressão que flui através e para além de sua esfera individual, conversando com as necessidades do nosso tempo, podemos dizer que ela se torna, para si mesma, a artista que já era.

AEI: Por que arte digital?
Bruno: Por que faz parte da nossa escolha viver feliz ao modo antigo ou viver estimulado acompanhando o avanço de recursos tecnológicos. Seria apenas mais um pincel para ajudar na criação daquilo que a arte se propõe, que é transmitir algo, encantar e muitas vezes incomodar. Para mim, que na infância já gostava de desenhar com lápis de cor e papel, hoje vejo as ferramentas digitais como grandes aliadas na produção cada vez mais de curto prazo que temos no mercado.

AEI: Como você vê o impacto do digital na arte? E se você não é “nativo digital”, qual foi seu salto para chegar a isso?
Bruno: Vejo ainda muita discussão e até preconceito sobre a arte digital. Claro que os processos são bem diferentes. No digital perdemos muito do contato com o material. A dureza, o cheiro, a textura, as reações. O digital nunca substituirá esse poder sensorial. Mas ele também causa um relaxamento. A tranquilidade de que você pode mudar a qualquer momento uma cor, uma luz ou o tamanho de uma forma. Além disso, o digital traz novas possibilidades que nunca faríamos apenas no tradicional, como as animações modernas, o audiovisual e as interações eletrônicas.
No fim das contas o que importa mesmo é a força da intenção, o impacto da mensagem. Quando temos isso, não interessa mais como foi feito. É tudo arte.
Eu mesmo não tive dificuldades em migrar das tintas para a pintura digital. Acabei que me especializei mais fazendo arte digital do que tradicional. Mas isso, depois de um tempo, causou uma sensação de vazio em mim. Decidi então passar um tempo sem pegar no computador e fazer mais cursos de técnicas variadas criativas. Hoje em dia, misturo muito os processos. Às vezes, faço tudo no tradicional e finalizo no digital. Outras vezes, inicio no computador e depois produzo no tradicional. Ou até mesmo faço tudo no digital, mas usando manchas e elementos da natureza que eu mesmo fotografei.

AEI: De onde vem sua inspiração para criar?
Bruno: Uma vez me cansei de morar na cidade. Nasci num sítio em Arapiraca, interior de Alagoas, e vivi entre plantas, animais e serras até meus seis anos. Depois fui morar em Recife, terra da minha mãe, lugar que eu adoro, mas que me saturou com tanta urbanidade. Busquei a tranquilidade da vida do interior e fui parar no Ceará, onde vivo hoje. Só então pude experimentar algo que quem vive nas capitais só conhece de forma superficial: o período da seca. E para mim a seca não foi apenas um fenômeno da natureza, onde tudo em volta vai morrendo, perdendo a cor e queimando. É muito também um processo psicológico humano. Algo dentro de você também morre. Você sente as pessoas mais aborrecidas, uma cidade menos feliz. Mas algo novo dentro de você também vive e está só esperando para nascer. Da mesma forma que chega um dia de uma boa chuva e tudo em volta fica verde novamente, você parece que floresce junto. Observar e sentir este ciclo me fez criar uma série de desenhos onde usei o carvão como material e símbolo da árvore morta mas que ainda vive em forma de arte.
Então, minha inspiração vem de participar e sentir os ciclos, de aceitar processos de dor e de incertezas e de renascer com novos aprendizados. E quando vejo que aquilo que fiz como resultado desse processo também atinge a sensibilidade do outro, considero que fiz arte.

AEI: Quais os desafios de criar em conjunto com outras pessoas?
Bruno: Percebo que é importante trazer a sua experiência e compartilhar seus conhecimentos mas também deixar espaço e abertura para a experiência do outro. Saber fazer e mostrar mas também ouvir e permitir que o desempenho do outro flua naturalmente. Não sei se consigo fazer isso bem, mas é o que tenho tentado. O resultado nunca será aquele que você tão minuciosamente ousou planejar. Se tratando de pessoas, quando há sintonia de intensão e soma de habilidades, o resultado pode sair pior ou melhor do que você imaginou, mas o processo em si, as trocas, essas se tornam muito mais valiosas. A gente acaba descobrindo caminhos inesperados e o projeto ganha vida própria. Então é instigar, permitir e confiar. São palavras que eu tento sempre lembrar ao fazer uma criação coletiva.

AEI: Por que o interesse pelo AEI? O que espera dele?
Bruno: Porque eu acredito no projeto. Acredito nos Pontos de Cultura. Pelo menos na comunidade em que participei, vi o quanto isso une os jovens e favorece a disseminação dos valores e da história do povo. A apresentação de novas tecnologias ou novos usos de conhecidas tecnologias, abre um leque de possibilidades e sonhos nos participantes. Isso em nenhum momento atrapalha a dinâmica e as tradições da aldeia. Na verdade, soma e fortalece tudo o que eles já fazem.
Mais do que a realização de um projeto, se tornou uma experiência pessoal e coletiva de muito aprendizado e compartilhamento. Eu sou muito grato pela oportunidade de fazer parte do AEI e espero poder contribuir mais futuramente.

AEI: Comente como foi viver este processo de residência na comunidade indígena e como essa experiência contribuiu para o seu desenvolvimento artístico.
Bruno: Primeiro, antes de ser chamado, algo em mim já dizia que ia dar certo. Quando eu soube que seria na aldeia Karapotó Plak-ô, no município de São Sebastião, eu fiquei muito feliz. Não por conhecer a comunidade (nunca tinha ouvido falar dela), mas sim por ser ao lado da minha terra natal, Arapiraca. Encarei isso como simbólico. Fazia anos que eu não voltava a essa região. Relembrar aqueles campos, o céu e a névoa da manhã foi voltar ao sítio de meu nascimento. Talvez por isso também fui recebido como se fosse da família. Cheguei aberto a observar, aprender, ter cautela e a superar dificuldades que as diferenças trazem. Mas logo me senti à vontade com os torés e as conversas. A presença da equipe da Thidewá no início foi fantástica em preparar a aldeia para a minha chegada. O Ivann, na articulação do grupo do PCI, foi um grande apoio; e a Nilde, quem cuidou de minha alimentação, foi como uma mãe para mim. Posso dizer que apenas pelo contato e pelas amizades que eu fiz, foi uma das melhores experiências que já tive.
O que mais aprendo quando vou em lugares assim e converso com o povo é a prova de que é possível um modelo de mundo diferente, onde as relações são mais verdadeiras, onde o tempo sempre está do nosso lado e temos um sentimento de pertencimento à terra, de nunca estarmos sozinhos. As grandes cidades, com suas distrações e urgências nos faz esquecer muito disso.
Desta vez pude aprender também mais sobre pintura corporal, como eles reconhecem e usam os símbolos. Vejo neles uma visão tão elaborada sobre arte que não deixa a desejar a nenhum frequentador assíduo de galerias. O mundo interno deles, seus sentimentos, desejos e sonhos, são quase que palpáveis. Compartilhar com eles essas maravilhas não só me fez um artista melhor, mas principalmente uma pessoa melhor.

AEI: Como a sua arte dialogou com a arte indígena?
Bruno: Já tenho um trabalho de ilustração voltado a cultura indígena há muito tempo. Sempre fez parte de mim esse interesse por povos nativos. Encaro como uma busca pessoal. Confesso que cheguei com a minha proposta de Arte Eletrônica morrendo de medo de não ser bem aceita, mas ao mesmo tempo encarando o desafio. Eu quis testar novas formas de contar uma história, não só oralmente ou no papel, mas sobre o corpo deles. Foi preciso cautela na hora de dizer para as meninas que menos roupa seria melhor. Numa sociedade indígena que já enfrenta séculos de modificações culturais pelo contato com o homem branco, o pudor e a negação da naturalidade do próprio corpo já estão instaurados no comportamento deles junto com todo o pacote religioso cristão. Mas foi uma surpresa ver as meninas tendo a coragem de se libertar mais desses padrões e elas mesmas se ajudarem a esconder apenas o necessário para se sentirem confortáveis e deixar as costas nuas para a projeção. O resultado acredito que foi bacana, mas o melhor mesmo foi a reflexão que isso causou nelas. As relações entre a aceitação do corpo, a pintura corporal, a tecnologia e a natureza, foram discutidas durante os 11 dias de residência. Isso me deixou muito feliz, porque pude ver que a essência do projeto estava ali presente e ganhando vida neles.
Eu quase não fiz nada visualmente no projeto. Apenas orientei ao tema e ao uso da mesa digitalizadora para desenhar no computador usando o Photoshop. Alguns tiveram dificuldade, outros já se sentiam à vontade nos primeiros riscos. Mas logo todos estavam desenhando e representando sua terra digitalmente. A troca foi muito boa. Foi deixado um material no Ponto de Cultura. Resta saber se eles farão proveito e darão continuidade ao que aprenderam. Saí de lá com saudades e com a promessa de voltar com mais ideias e mais interações coletivas. Awere!

Conheça mais: https://brunogomes.art/lendas-indigenas

1 Comment
  • sebastian gerlic
    Posted at 20:25h, 21 junho

    Valeu Bruno pelas partilhas…. Adorei refletir sobre o artista como gente e sobre a arte como vida…. gratidão eterna!